15 maio 2006

Meus onze anos

Minha mãe era daquelas católicas desencanadas, não praticante. Ela ia à missa mais ou menos uma vez por mês, mas também tinha fases de ir todo domingo. Apesar de não estar muito aí para religião, era do tipo que se escandalizava se visse alguém falando mal de sua religião, ou do papa, por exemplo. Meu pai não a acompanhava, então às vezes ela me levava para a igreja como companhia. Nessa época eu tinha entre 7 e 8 anos. Gostava de ficar observando os afrescos no teto do templo, a paróquia São José de Vila Zelina, em São Paulo. Até hoje há lá uma imagem de Nossa Senhora com algumas crianças em volta, e um sacerdote. Só recentemente fiquei sabendo que aquela imagem representa uma aparição de Nossa Senhora de Siluva, padroeira da Lituânia.
Eu ficava olhando também as esculturas, em especial, para as imagens representando Jesus Cristo. Perdia-me em pensamentos. Focando o olhar nas representações de Cristo, eu via paz, ira, força... Claro, apenas pinturas e estátuas... mas para mim eram objeto de meditação, por todo o tempo que durava a missa. Eu observava sentindo um misto de admiração e curiosidade. Tanta altivez, e no entanto lá estava ele, no crucifixo, pregado...

Com 11 anos fui levado por minha mãe para seguir a procissão da sexta feira santa de nosso bairro. Era uma sexta feira santa daquelas chuvosas e frias, da década de 1970, como me parece que eram todas, antigamente, tristes, sombrias mesmo. Minha mãe contava que “no seu tempo”, nesse dia, ela e suas irmãs eram proibidas por minha avó até de brincar, cantar, falar alto, etc. Segundo ela, era um dia de contrição que a maioria respeitava ao máximo.
Então lá estava eu, seguindo a procissão... E lá ia a imagem do “Senhor morto”, bem à minha frente. Representa Jesus morto, estirado numa maca. Corpo ferido, marcas múltiplas. Expressão de sofrimento. Sangue escorrendo pelas faces, múltiplos ferimentos pelo corpo. Ombros e joelhos esfolados. Mãos e pés trespassados, assim como o lado do torso. Rapazes vestidos como soldados romanos marchavam atrás da imagem de Cristo. Senhores muito sérios levavam a imagem e oravam. Atrás vinha uma imagem da “Virgem Dolorosa”. Todos cantavam cânticos de lamento, seguidos de orações, que se seguiam de cânticos, e assim prosseguia... Todos seguiam com velas nas mãos, expressões melancólicas.
De repente, chuva! Caiu um forte toró por cima da turba, por cima da imagem, encharcando tudo e todos. Mas ninguém se moveu, ninguém arredou pé. Alguns tinham guarda chuvas, e os abriram, dando “carona” para os que estavam mais próximos, que aceitavam a ajuda de bom grado. Os que não tinham, não se importavam em continuar caminhando debaixo de uma forte chuva. As orações não cessaram nem falharam naquela noite, nem por um segundo, quando a chuva desabou de repente. As lanternas se apagaram, e só. Eu não sei bem porquê, me emocionei. Senti-me como que transportado para a época de Cristo. Como deveria ter sido no dia em que ele de fato morrera, de forma tão cruel, deixando atônitos discípulos, seguidores, e aqueles que simplesmente acreditavam que ele representava Algo maior. Eu caminhava, levado pela mão por minha mãe, protegido da chuva apenas por uma pequena “sombrinha”. Olhos fixos na imagem do corpo de Cristo, chuva forte batendo em cima. As luzes dos postes, através dos pingos esvoaçantes da água que respingava sobre a escultura, formavam um prisma de múltiplas cores, num efeito mágico, inebriante. Voltei para casa transtornado. Qual o significado de tudo aquilo?
E foi aí que resolvi: iria ser padre!