30 maio 2006

I have the power!!!

Aqui vai mais uma das minhas lembranças de infância, que eu acho que valem a pena ser contadas. Será a última destas por aqui, ao menos por enquanto, porque quero chegar logo ao presente, tem mil coisas acontecendo no aqui-agora, das quais quero falar. Para contar todas as minhas peripécias de criança, precisaria de muito espaço e tempo.

Isso aconteceu mais ou menos na mesma época do incidente anterior, da minha autocura. Eu tinha ainda seis anos de idade. Nessa época, comecei a sofrer de sonhos recorrentes: um pesadelo terrível, que se repetia quase todas as noites. Na verdade, não sei se poderia chamar de sonho recorrente, porque não eram sempre exatamente iguais, apenas uma situação se repetia. Era mais ou menos assim: Eu me via de repente no meio de algum lugar escuro, desconhecido, de onde não sabia como sair. Perdido no meio da escuridão quase completa, num lugar estranho e inóspito, uma sensação de abandono total tomava conta. A única coisa que eu podia divisar no meio das trevas eram vultos de coisas que se pareciam com ruínas, em volta de mim. Restos de construções demolidas, ou coisa assim. Daí percebia uma presença estranha, bem perto. Sentia algo como uma força muito negativa, maligna, chegando próximo. Eu me assustava, claro. Aí vinham os ruídos. Sons de uma fera terrível, como um cão raivoso, só que muito maior. Apavorado, percebia esta presença se aproximando mais e mais. Ouvia seus passos sorrateiros, mal intencionados. Aí eu corria, tentando fugir para longe desta misteriosa criatura. E o pavor só fazia aumentar: A besta corria atrás de mim, e começava uma perseguição terrível. Quanto mais eu corria, mais a fera se aproximava. A perseguição continuava, eu num pavor total, e uma fúria violentíssima atrás de mim. Tudo era escuro em volta, e eu não podia ver o caminho, muito menos escapatória. Sei que corria muito rápido, era como se naquele lugar eu tivesse capacidades sobre-humanas. Mesmo assim, a besta era mais rápida, pelos seus ruídos eu percebia que já estava muito perto, à distância de um palmo ou menos. Olhava para trás, sentia até o seu hálito nauseante, mas ainda não podia ver. O desespero aumenta, tento correr mais rápido, não adianta, a fera já me alcança. Uma nova olhada para trás, e agora vejo sua face monstruosa, bocarra escancarada, braços e garras enormes, dentes afiados que me predam como uma pantera faz com um coelho. O monstro me agarra, e eu desperto aos gritos. Aterrorizado, ensopado de suor. Ainda entorpecido pelos sono e pelo pavor, olho para os lados, temendo que a fera tivesse vindo junto comigo, do lugar onde estava. Grito, choro, pavor incontrolável. Chamo meus pais, aos soluços. Meu pai me diz que não é nada, minha mãe diz que monstros não existem, me explicam o que é um pesadelo. Meu irmão ri... Não sei por quantas vezes esta cena se repetiu em minha infância, mas sei que foram muitas. O suplício durou tempo suficiente para eu começar a ter medo de dormir e encontrar de novo este ser bestial.

Num destes sonhos, eu consegui vê-lo por inteiro: Era humanóide, com braços longos e todo o corpo coberto de pêlos, longos e ruivos, dos pés à cabeça. Pés e mãos desproporcionais, caninos enormes, se projetando para fora da mandíbula potente. Olhos escuros, negros, com uma apavorante expressão de fúria assassina. Na verdade, hoje acho que ele se pareceria bastante com a figura clássica do Sasquatch, só que mais assustador, uma figura com um ar mais demoníaco. Bem, não preciso descrever o impacto de ver uma criatura como estas correndo (e como era rápido!) atrás de você, ainda mais quando se tem seis anos de idade. O fato é que eu sofri por meses a fio com este tipo de pesadelo. Meus pais já não sabiam o que fazer. Minha mãe, piedosa, às vezes permitia que eu dormisse entre ela e o meu pai. Comecei a ter medo de ir dormir. Na minha época de infância as coisas eram bastante diferentes do que são hoje. Nos dias atuais, com certeza eu teria sido levado a um psicólogo ou psiquiatra. Mas em outros tempos, e tendo eu nascido no seio de uma família extremamente humilde, do interior do Sul do Brasil, o máximo que tive, como ajuda, foram palavras: “Não tenha medo, não se preocupe. São apenas sonhos...” O pior de tudo é que meu irmão dez anos mais velho se divertia com a situação e me botava mais medo ainda, quando meus pais não estavam por perto. Dizia que monstros existiam sim, e que se esse estava atrás de mim, algum bom motivo deveria ter.

É isso, com seis anos de idade eu sofria como gente grande por causa destes pesadelos... Até porque não acreditava que fossem realmente apenas sonhos. Até que um dia, uma manhã, pelo que me lembre, eu estava sozinho, no quintal, sentado, tomando sol. Pensando na vida (certamente a coisa que eu mais fiz até hoje). Pensava no que seria de mim, à noite, quando o sono viesse. Eu estava convencido de que aquela noite seria a última. O monstro ia me pegar de vez, eu não tinha dúvidas, e desta vez eu não iria conseguir acordar, não haveria fuga possível. E isto significaria o meu fim. Claro que eu já tinha tentado ficar sem dormir, mais de uma vez, mas isso não estava funcionando... Triste desfecho para uma vida curta. Fiquei assim, perdido em pensamentos depressivos por um longo tempo, até que...

Uma luz se fez dentro de mim! Fui tocado por uma força maior do que eu, e maior do que meu irmão ou meus pais, definitivamente... Uma sensação de paz e força interior me tomou de assalto, eu não sei bem porquê. Fechei os olhos, como que por instinto, algo que se faz porque é a única coisa a ser feita, e não porque se escolhe. E assim, de olhos fechados, olhando para dentro de mim, eu entendi tudo!! Por um momento, fui o senhor do universo!! Fui o senhor de mim mesmo – eu vi a solução para o meu problema, enquanto um sorriso se formava na minha redonda face: Uma voz gritou dentro de mim: “o monstro se alimenta do seu medo! – quando ele aparecer, lembre-se que não é real, e não fuja!”...

A noite chegou. E com ela, o sono. Eu dormi, e não falhou: lá estava eu, no ambiente escuro, cercado de ruínas, construções semi-destruídas. O pavor me tomou de assalto, mais uma vez. A besta! E eis que ouço seus sons, como sempre. E ouço seu rosnado ameaçador. E lá vem ele pra cima de mim novamente. O medo me sacode como uma folha no meio de um temporal... E eu corro. O monstro me persegue. Eu sei que hoje ele vai me pegar e eu não vou conseguir fugir. Estou de novo apavorado, perdido. Corro o mais rápido que posso, mas o monstro, como de costume, me alcança. Ele é mais rápido. Eu quero berrar, quero apenas sobreviver, mas já não tenho forças... É quando eu me lembro! Lembro do que havia me acontecido. Lembro do que havia entendido, na manhã anterior. Revivo, num segundo, toda a experiência, a sensação... E então, imediatamente, eu perco o medo. E paro de correr. Simplesmente paro de correr! O monstro assassino, abominável, já roçava meus calcanhares... mas nada acontece. Ele passa direto por mim, como se meu corpo fosse feito de fumaça, e ele tivesse atravessado.

Eu olho para os lados, e o ambiente já não parece tão escuro quanto antes. Uma luminosidade que eu não sei de onde vem clareia o lugar e eu posso agora enxergar melhor. Há escombros e entulhos á minha volta, pedaços de antigas casas. Posso ver até algumas partes onde se conservam ainda janelas e portas. Olho para outro lado, no fim do que teria sido uma rua, e lá está ele: o monstro. Parece agora um cachorro que levou uma bronca do dono, cabeça baixa, meio amuado. Mas ele volta a se erguer, olhos querendo ameaçar, novamente. Eu apenas sorrio: "Eu não tenho mais medo. Isto não é real, e você não pode me fazer mal". A besta se move, novamente, como um touro enfurecido, escavando com as patas o chão poeirento. Eu sei que a sua aparência é assustadora, mas agora não me afeta mais, nem um pouco. Ele vem pra cima de mim. Eu chego a pensar em desviar, mas a calma me invade de um modo tão absoluto que eu apenas continuo sorrindo, e não me movo. O monstro vem com tudo que tem, à toda velocidade, com todo ímpeto, e... me atinge! E é como se ele fosse feito de pó. Todo seu corpanzil se desvanece em milhares de partículas, que se espalham, como aquelas finas fagulhas que voam quando se chuta uma fogueira de festa junina.
Partículas esvoaçantes dançam por alguns segundos, pelo espaço à minha volta, até perderem sua luminescência e sumirem por completo, no escuro daquele lugar estranho... EU VENCI!!! Sentia uma euforia incontida! Eu venci a fera terrível! Era como vencer a própria morte!..

Acordei tranquilo e feliz, uma sensação de paz incrível me invadindo... Nunca mais tive pesadelos com aquela besta assassina atrás de mim. E posso dizer que este episódio foi de importância fundamental em minha vida. Até hoje, quando lembro dele, me sinto mais corajoso para enfrentar os problemas e monstros desse mundo.