Meu caminho foi outro...
Em 1981, na parte direita da imensa porta frontal da Catedral da Sé, em São Paulo, foi colocado um cartaz. Feito caprichosamente à mão, com letra de mulher, palavras coloridas e muito caprichadas, com canetinha hidrocor. O título dizia: "Nossas paróquias precisam de padres. Jovens, ingressem no seminário... entreguem suas vidas para N S Jesus Cristo! - se você tem entre 14 e 21 anos, procure informações na secretaria. "Fiquei encantado ao encontrar minha chance! Estava ali a oportunidade de que eu precisava. Fui até a secretaria e perguntei pela senhora cujo nome estava no cartaz. Descobri que se tratava de uma freira muito simpática e comunicativa, que me recebeu com carinho quase maternal. Depois de me explicar, resumidamente, certas bases acerca do noviciado, me deu uma data para retornar, e me entregou um pequeno convite em papel sulfite, impresso no mimeógrafo(alguém se lembra disso?), num quadradinho de papel cortado com régua. Uma semana depois, eu estava de volta, mamãe orgulhosa à tiracolo, para assinar alguns documentos, como responsável por mim. , A propósito, ela ficara feliz ao saber da minha decisão. Mas no interior da igreja logo fomos separados, e fui levado para uma espécie de "hall" ao fundo do imenso salão da catedral, ao lado da sacristia. Um aposento espaçoso e mal iluminado, para onde fluía, apenas, um estreito facho de luz vindo de uma pequena clarabóia há uns 4 metros de altura(na Catedral, todos os tetos são sempre muito altos!). Este halo iluminava parcialmente uma escultura representando a figura de um querubim meio triste, segurando sobre a cabeça um disco que poderia servir como mesa, tudo entalhado numa peça de mogno muito bem lustrada. Ao redor, várias cadeiras de madeira, encostadas numa parede toda revestida de mármore de Carrara. Num canto, um melancólico confessionário, daqueles bem antigos, e do lado oposto um grande crucifixo na parede. Fiquei ali, sozinho na penumbra, pensando sobre o importante passo que estava prestes a dar. Do meu lado esquerdo havia uma outra porta, toda em pinho maciço, beirais ricamente entalhados com sisudas figuras, e uma plaquinha em metal dourado que dizia: "Clausura". Brrrrr.... calafrios! Todo o interior da Catedral da Sé, por cujos corredores já me havia esgueirado, curioso, quando pequenino, compõe um ambiente gótico tão belo quanto sombrio e melancólico, que remete a um passado mais austero, em que a religião católica dominava as mentes com sua doutrina de expiação e culpa, tornando a vida mais triste e também mais contemplativa. Por fim, a porta se abriu e uma outra freira, não tão simpática quanto a que me recebera no primeiro dia, entrou. Nem sinal de minha mãe. Esta nova freira sentou-se bem à minha frente, me olhou de cima a baixo, e por fim, abriu um sorriso. Eu, um garoto de 14 anos, um quê assustado, me desarmei e sorri de volta. Ela deveria ser legal, também, e, afinal, o que eu queria era algo que estava muito além do que tinham pra me oferecer simples seres humanos. Eu queria encontrar Deus. E servi-Lo. A senhora dentro daquele hábito cinza-claro realmente acabou se mostrando tão gentil quanto sua colega de uma semana atrás, apenas seus modos eram mais severos. E eu logo entendi o porquê da severidade: Era ela a incumbida de explicar aos garotos que, se quisessem ser padres, teriam que abandonar quaisquer expectativas de fama, fortuna e mulheres. Sim, foi essa senhora quem me explicou pela primeira vez, que se quisesse ser padre, precisaria fazer, diante de Deus, três votos: Pobreza, Obediência e Castidade!
Foi muito desagradável, para mim, tomar conhecimento de que, para ser um sacerdote, eu simplesmente teria que abrir mão de todas as outras coisas desta vida. Algo não parecia certo, para mim. Alguma coisa como que estava fora do lugar, não se encaixava. Então, minha suposta vocação iria exigir de mim tudo, tudo que eu pudesse sonhar para minha vida, mesmo que eu fosse um homem puro, simples e piedoso? Voto de pobreza?? Esse foi o que mais me chocou... É que, na minha mente, o sacerdote era apenas um cara que detinha o privilégio de uma intimidade grande com Deus e que tinha uma maior obrigação de ajudar o próximo, ser uma referência para a comunidade. Fora isso, seria um homem normal. Em todo caso, sem receber chance de argumentar, fui dispensado para pensar, em casa, sobre os meus novos conhecimentos acerca do que eu estava procurando. E foi marcada uma nova data para o meu retorno à igreja, dali a quinze dias.
Já em casa, meu irmão me ridicularizava: "Só o mano aqui vai poder ter namorada!.." - E sabe que até então eu não tinha pensado nisso? Na verdade, eu era ainda um menino casto, minha proximidade máxima com uma garota se dera na quarta série, um beijo selinho na boca de uma coleguinha de sala chamada Marilza. É, eu sei que hoje um garoto de quatorze anos já anda pelas domingueiras da vida, cansado de beijar muitas meninas, e muitos até já perderam a virgindade bem antes. Mas "no meu tempo" as coisas realmente eram um pouco diferentes. E, além disso, como já disse, eu realmente ainda era puro. Mas, daí a saber, assim, de uma forma tão definitiva, que nunca na minha vida poderia conhecer mulher... De qualquer forma, voltei depois de quinze dias. E lá estava eu, de volta à penumbra daquela sala, no interior da majestosa Catedral da Sé. Mas dessa vez não estava só. Mais quatro outros garotos que compartilhavam do meu desejo de ser padre ali estavam, aguardando pela freira orientadora vocacional. Fomos deixados esperando por um bom tempo(hoje eu sei que tudo fazia parte de um processo para se descobrir quem tinha verdadeira vocação)... Começamos a conversar entre nós, cinco meninos candidatos ao seminário. Um dos que ali estavam, um mulato com carinha de muito esperto, era visivelmente mais velho que os demais. E dizia: "Vocês acham que depois de padres formados, teremos mesmo que cumprir todos estes votos que nos obrigam? Não é bem assim, não! Eu conheço vários padres que tem propriedades... E o celibato, então? Você não é obrigado a ser celibatário! Que mal há em ter mulher? Eu, por exemplo, depois que for ordenado padre, não vou deixar de ter as minhas namoradas! O que eles estão fazendo com a gente aqui é só para nos assustar..." De repente a freira aparece e nos pede para voltar na próxima semana.
Esse ritual se repetiu algumas vezes. Só ou acompanhado de outros meninos, eu era deixado por um longo tempo esperando pela volta da orientadora vocacional, que de repente simplesmente aparecia e dizia: "Está dispensado! Volte semana que vem!" - e me dava dia e horário para voltar. Era toda semana a mesma coisa, eu pacientemente retornava, e era colocado para esperar naquela sala soturna, olhando para as paredes, por horas e horas... Como Bodhidharma na porta do templo Shao Lin, esperando que os portôes se abrissem, assim eu voltava, semana após semana, sonhando com o dia em que finalmente seria iniciado como noviço. Até que um dia... eu simplesmente não voltei. No decorrer do processo, graças a Deus, as irmãs responsãveis pela seleção dos vocacionados conseguiram cumprir, em mim, suas melhores intenções, de não permitir que um rapazinho illudido tomasse equivocadamente uma decisão tão radical em sua vida.
Eu sei que não foi a idéia de ter que fazer um voto onde declararia, perante Deus, que permaneceria, por vontade própria, pobre por toda minha vida nessa Terra. Nem o fato de que teria que me manter virgem até a morte. Nem mesmo as palavras daquele garotinho mulato, já com idéias tão falsas, que mesmo dentro de um templo sagrado incitava seus colegas ao erro. Muito menos o desânimo com a aparente desfeita das religiosas diante dos meus frequentes retornos ao templo, para informações mais concretas. Não foi nada disso que me demoveu da minha idéia e vontade de ser um sacerdote. O que me fez mudar de idéia, definitivamente, foi saber daquele outro voto que eu teria que prestar: O da obediência. Que significaria dizer que, por toda minha vida, teria que ser fiel e obediente à autoridade da Igreja. Uma coisa eu tinha, já bem resolvida, dentro de mim: Eu não tinha nascido para deixar que ninguém, mas ninguém mesmo, pensasse por mim. Eu não poderia, nunca, abrir mão de ouvir minha consciência, e tomar minhas próprias decisões, simplesmente por dever obediência cega a algum padre superior, ou bispo, cardeal ou mesmo o papa. Assim, da última vez que voltei da Catedral, fechei-me no meu quarto, ajoelhei e fechei meus olhos: "Perdoe Jesus, mas encontrarei meu caminho de outro modo...". Foi aí que resolvi comprar uma Bíblia e lê-la na íntegra, por mim mesmo (sim, tudo isso aconteceu antes). Esse seria o primeiro passo nas minhas investigações pessoais do Grande Mistério da vida. E seria minha primeira providência para realizar aquilo que me resolvera fazer aos quatro anos de idade: encontrar Deus!
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