26 julho 2006

Kiai!!! - conclusão

Um ano deste treinamento físico e mental ultraintensivo, a que fui submetido, seria o equivalente a, no mínimo, 5 ou 6 anos de treinamento comum. Afinal, eu fazia quatro treinos por dia, fora as aulas extras, direcionadas. Os praticantes normais, em geral, fazem apenas um treino por dia, três vezes por semana. Eu também fazia dois treinos aos sábados, um de manhã e outro à tarde, e um especial todos os domingos, dos quais só participavam os faixas pretas e eu(!). Além de tudo isso, o tipo de treinamento que eu fazia era muito mais rigoroso que o normal, porque eu era um estagiário no dojô, aspirante a Senpai. Sim, eu realmente aprendi muito. Mas não vou falar aqui da minha evolução como artista marcial. Quero me ater à importância espiritual deste período em minha formação como ser humano. Também não vou entrar agora numa análise aprofundada do que vem a ser o Bushidô (pretendo fazer isto mais tarde, quando esse resumo da história da minha Busca estiver concluído - o mesmo vale para todas as doutrinas que conheci). Por hora, gostaria de compartilhar ainda algumas curiosidades da minha vida de "Conrai":

Nove meses se passaram. Como disse antes, a sede administrativa do dojô Tanaka Karatê Dô funcionava num prédio de quatro andares: térreo, primeiro, segundo e terceiro andares, além de uma vasta sacada no topo, onde práticas também eram realizadas. No térreo funcionava a recepção. Os treinamentos ordinários eram realizados regularmente no primeiro andar. Os exames para faixa preta e graduação dos Senpais, e outros treinamentos especiais, aconteciam sempre no segundo andar. Mas o que havia no terceiro andar... era um completo mistério para todos, até mesmo para os alunos mais antigos! Nunca ninguém era autorizado a subir lá, e muito menos transpor aquela velha e pesada porta de pinho, que eu até então só tinha visto, fechada, nas poucas vezes que precisei subir ao topo do prédio, para a limpeza ou para algum treino diferenciado. Como o Shihan era o perfeito mestre conservador, que valorizava ao máximo as antigas tradições orientais, circulavam entre os alunos inúmeras “lendas” a respeito do que havia no “andar proibido”. Até porque, lá ele se mantinha trancado as tardes inteiras. Alguns diziam que ele ficava trancado meditando, por horas a fio, e que lá dentro apenas havia um enorme salão vazio, repleto de castiçais e incensários. Conhecendo como o conhecia, tenho que dizer que esta hipótese, se confirmada, não me surpreenderia. Outros diziam que ele era uma espécie rara de vampiro japonês, que tinha mais de quinhentos anos, e que ficava deitado num caixão recarregando energias(sic). Como gaiatos nunca faltaram nesta terra, tinha um cara que falava que lá ele recebia amigos e muitas garotas, e ficava na farra o dia inteiro, daquelas da pesada, com bebidas, drogas e rock´n roll. Sacanagem... O fato é que minha imaginação de moleque de 16 anos, claro, ficava estimulada com essas histórias todas, sobre um homem que eu tinha aprendido a amar como um pai, e que era misterioso em sua própria natureza.
Acho honestamente que fui um ótimo Conrai, servi sempre o mais fielmente que pude. O Shihan me lembrava constantemente que teria que retomar os estudos, pois não poderia ser um Senpai sem formação universitária em educação física. Como disse no post “Uma nova descoberta”, eu havia perdido um ano na escola, por isso eu treinava e trabalhava no dojô em período integral, das 6:45 da manhã até algo em torno de 22:30 (após o último treino ainda permanecia para organizar e arrumar o salão).
Num belo dia, ao chegar para o treino da tarde, fui avisado pela recepcionista: “O Sr. Tanaka o espera no terceiro andar” (!!!!). Eu não pude deixar de pedir a ela pra repetir a afirmação, pois o que acabara de ouvir me parecia impossível! Ela apenas sorriu e confirmou. Claro que ela sabia de toda a mística envolvendo o andar proibido. Fiquei super agitado! Torrentes de pensamentos explodiram na minha jovem cabeça! Eu sabia que aquilo era uma enorme honra para um Conrai!! Ou então... eu tinha feito algo muito errado, e uma bronca homérica me aguardava. Como a ordem era pra subir, antes de fazer qualquer coisa, sequer parei no primeiro andar para guardar meu "dogui" no meu armário. Como sempre cumpria as ordens ao pé da letra e de imediato, subi de pronto, dogui dobrado e amarrado com minha faixa (que já era azul), à maneira tradicional, às costas. Chegando lá, verifiquei a porta com cuidado... estava aberta! Entrei com cuidado ainda maior, pisando devagar, afinal, entrava em solo completamente desconhecido, tudo era novo, e eu não sabia o que me aguardava. Shihan Tanaka era um Sensei de outros tempos, mestre de uma arte que hoje não tem mais lugar em nossa sociedade. Alguém que estabelecia como uma das regras para a entrega da faixa preta, um teste no qual o aluno deveria se postar diante de um grande alvo de madeira, e se concentrar. O Shihan, à distância de cerca de uns vinte ou trinta metros, entortava um arco “kyudô” e mirava uma flecha bem no peito do aspirante (que assinava um termo de responsabilidade em caso de acidentes!!)!! Eu sei que parece mentira, mas isso realmente acontecia; esse tipo de teste era exigido, como prova de coragem, determinação e domínio dos reflexos! Bem, mas o próprio Shihan resolveu parar com extremos como esses a partir da ocasião em que um dos aspirantes cometeu um movimento equivocado, escapando por milímetros de receber uma flechada que poderia ter sido fatal! Esse era o meu Shihan! O mesmo que me vinha golpear ruidosamente o abdômen tensionado, com uma "shinai" (espada de bambú), ao final de sessões de 500 abdominais! O mesmo que exigia o condicionamento/calejamento de todos os músculos envolvidos em luta, como punhos, abdominais, antebraços e canelas! Esse homem é que justificava a importância daquele momento, e a grande tensão que eu sentia.

E devo dizer que o que vi, ao abrir a porta, não frustrou minhas expectativas. Você vai saber agora, em primeira mão, o que havia no interior do legendário andar proibido do dojô sede Tanaka Karatê Dô! (rs)

Ao adentrar finalmente o tão misterioso aposento, vi que o espaçoso salão era completamente preenchido por uma espécie de intrincado labirinto, formado por muitas divisórias de madeira, com múltiplos corredores, que imaginei, levavam a várias salas, usadas para fins diversos. Mas havia um corredor principal, no meio dos outros, um pouco mais largo. O mais impressionante era que todas as paredes divisórias que constituíam esse labirinto, eram, literalmente, cobertas por fotografias, de cima a baixo, do começo ao fim. Me aproximei e vi do que se tratavam: Eram fotos de todas as fases do meu Sensei. De cara, na entrada, algumas particularmente interessantes: Shihan ainda jovem, usando apenas a calça do dogui, ostentando um exuberante físico a la Bruce Lee, posição “Zen Kutsu Dachi” (ataque avançado), estilhaçava com o punho esquerdo (e ele não era canhoto) uma pilha de blocos de concreto! Numa outra, dois homens seguravam um outro bloco, maior, enquanto Tanaka voava num espetacular “ushiro-mawashi” (chute giratório), para destruir o bloco em vários pedaços. Numa outra ainda, das que mais me impressionou, aparecia um grão mestre no melhor estilo Tao Pai Pai (aquele mesmo), com a cabeça raspada, cavanhaque e os longos e finos bigodes brancos, pendendo pelos lados da boca. Traje samurai tradicional, sentado em posição de alerta, observando enquanto meu Sensei, ainda muito jovem, decepava um tronco preso verticalmente numa base de pedra, com um golpe de “Shuto Te” (faca de mão). Movimento impressionante! Meu Sensei era o maior, mesmo! Esqueci completamente de mim mesmo, sentindo-me transportado no tempo e no espaço, observando aquelas fotos! Haviam centenas, talvez milhares delas. Uma mostrava o Shihan, seminu, postado sob as pesadas águas de uma grande cachoeira, olhos fechados, em postura “Kiba Dashi” (cavaleiro de ferro). Em outra ainda mais à frente, vi uma fileira interminável de Conrais, que corriam num imenso campo coberto de neve (provavelmente Oeste do Japão). De repente, do corredor principal, ecoou uma voz conhecida, firme e forte como sempre! Ele me chamava, impaciente. Seguindo o som, pelo corredor, fui passando, num estado quase letárgico, por aquelas paredes revestidas com tantas e tantas fotografias incríveis! Finalmente alcancei o final do corredor! Meu coração estava aos pulos. Cheguei numa sala ampla, ricamente decorada com móveis e ornamentos orientais, com uma grande tela com a palavra Karatê em pintura “kanji” na parede principal, atrás de uma longa mesa ornamentada. Sentado detrás desta mesa, o Shihan me esperava. Uma lenda viva! Quando me viu, desenhou-se levemente no seu rosto algo que poderia ser interpretado como um sorriso (coisa rara). Eu devia ter feito alguma coisa muito certa... Ficamos ali, separados por aquela mesa enorme, por segundos que me pareceram uma eternidade. Por fim, ele fez um gesto para que eu me aproximasse. Eu o fiz, e ouvi dele o mais completo inesperado: “Eu tenho muita esperança em você. Sua evolução me agrada, você está indo muito bem. A partir de hoje, você começará a dar aulas para os iniciantes, e eu vou começar a remunerá-lo.”

Emoção! Emoção! Emoção! Não posso explicar o quanto era difícil agradar aquele homem! Só consegui contestar que ainda era faixa azul (neste estilo de karatê, a faixa azul é segunda, logo depois da branca). Ele franziu o cenho e respondeu: “A única função da faixa é segurar as calças. Hoje mesmo você será testado, e estou certo que vai passar direto para a verde” ( a graduação é a seguinte: branca – azul – amarela – verde – marrom - marrom com graus, de um a quatro - faixa preta ). Nem preciso dizer que ganhei o dia!! Logo mais, à noite, passei no exame, que incluiu o “Jiu Kumitê” (luta de contato = combate real = porrada!). Desse dia em diante, me tornei uma espécie de Conrai-Senpai. Meu progresso era realmente incomum, como já disse, graças ao treinamento ultra-intensivo.

Assim eu passei um ano e tanto de minha vida, aprendendo, na prática, o real sentido da filosofia Karatê. Vivenciando as tradições. Sentindo, literalmente na pele, o valor e a importância do mais puro estilo de vida Bushidô... Por que terminou? Por que não continuei neste caminho, e porque não estou nele até hoje? É uma pergunta que me faço até hoje. Como essa história terminou? Aguarde o próximo post...