12 julho 2006

Kiai!!!


Tsunioshi Tanaka é um dos nomes mais respeitados no mundo (não é exagero), em termos de artes marciais. Ele foi, ao lado de Masutatsu Oyama, o introdutor do Karatê estilo Kyokushin (luta de contato) no Brasil. Referência absoluta. Mas eu nem imaginava nada disso quando o conheci. Ele me pareceu um pouco engraçado (Shihan, eu não creio que o senhor venha a ler isto algum dia, mas, se o fizer, saiba que estou falando com o máximo respeito). Digo engraçado porque me parecia um personagem de história em quadrinhos. Ou então, um daqueles mestres que eu via nos filmes de artes marciais, que tanto gostava, materializado ali, diante de mim. Homem forte, em todos os sentidos. Sério, controlado. Verdadeiro praticante do Bushidô, isso eu posso garantir. Eu tenho o privilégio de poder dizer que conheci intimamente um verdadeiro samurai, um dos poucos de fato, que pisou em terras tupiniquins. Recentemente visitei o Instituto Niten (do mestre Jorge Kichikawa, na Vila Mariana, aqui em SP, a maior e mais respeitada escola de kenjustsu do Brasil), e, ao mencionar o seu nome, todas as frontes se reclinavam. O homem é uma sumidade. Mas agora chega de tietagem em cima do meu antigo Sensei, e vamos a continuação da minha história...

Ele, o Shihan em pessoa, nos explicou, para mim e para o amigo que me acompanhava, a natureza da oportunidade que estava oferecendo em suas escolas. Ele estava abrindo vagas para “Conrai”. O Conrai é uma espécie de aprendiz, dentro de uma escola de artes marciais japonesa. No Japão, é costume o jovem idealista procurar um dojô (escola de artes marciais) para servir como uma espécie de “ajudante geral”. Em troca, ganham o direito a um tipo de treinamento especial, com o objetivo de se formar "Senpai" (instrutor), e depois "Sensei" (mestre). "Shihan" é um título honroso que significa algo assim como Grande-Mestre, normalmente adquirido após a conquista do 6º grau da faixa preta. Os mestres costumam ter um carinho especial por esse tipo particular de aluno, e muitas vezes é para eles que acabam revelando seus maiores segredos. Eles costumam se tornar, mesmo, grandes expoentes dentro do Karatê. Shihan Tanaka, naquela primeira explicação, fez questão de não falar dos aspectos mais glamourosos de ser um Conrai. Deixou claro que teríamos que fazer, no mínimo, quatro treinos por dia: um de manhã, um à tarde e dois à noite. Além disso, teríamos que permanecer o dia inteiro na academia, sendo dispensados somente às 22 horas, para dormir em casa; reiniciando no dia seguinte às 7 da manhã (!). A única liberação seria para ir à escola, de manhã ou á tarde, já que os treinos mais importantes aconteciam à noite. Ele não nos poupou de nenhum detalhe: Que teríamos que varrer o dojô, todos os dias; limpar todas as salas de treino, lavar os banheiros, distribuir panfletos na rua, servir em tudo que fosse necessário. Condição indispensável era o desejo incondicional de se tornar um mestre em Karatê. Karatê Kyokushin não é um estilo de arte marcial “tranqüila”, trata-se de luta de contato, combate real, com simulação de situações de agressão e tudo, inclusive tendo sido adotada por militares, no Japão, como tática de combate corpo a corpo. Por isso mesmo, o treinamento seria muito duro. Eu e meu companheiro ouvimos tudo em silêncio, trocando breves olhares. Por fim, o Shihan terminou a explicação e disse para pensarmos no assunto, e que, se interessasse, deveríamos conversar com nossos pais e voltar a procurá-lo. Ficamos os dois em silêncio, por um tempo. Shihan Tanaka já fazia um gesto com a mão, para que nos retirássemos. Chegamos a dar meia volta, mas, então, afinal meu amigo Gilson (cadê você, cara?) voltou a se virar, e, tomando coragem, perguntou: - “E quanto vamos ganhar por mês?” – Bem, parecia uma pergunta bastante coerente, óbvia. Mas eu não sei bem porque, pela maneira como a coisa tinha sido exposta, estávamos sem coragem de tocar no assunto dinheiro. Shihan Tanaka tinha ficado o tempo todo falando em honra, no quanto uma experiência como esta iria nos ajudar a crescer espiritualmente, fazer com que nos tornássemos “homens de verdade”, e etc. Bem, mas, afinal, era uma oportunidade de trabalho, não era? Quer dizer, um emprego. E então, a pergunta foi feita. “Quanto é o salário?” O Shihan fechou o semblante, olhou bem fixo em nossos olhos, e disse. “A recompensa maior será o aprendizado. Se vocês se mostrarem dignos, se tornarão professores, e então receberão um salário, ou serão comissionados de acordo com a quantidade de alunos da filial que forem administrar. Além disso, eu pessoalmente vou pagar a universidade de educação física, se achar que vale a pena investir em algum de vocês. Mas esse reconhecimento demora alguns anos. Vocês ainda são muito jovens, é preciso que demonstrem paciência. Isso também faz parte do treinamento. É só”.

Saímos da velha relojoaria, meio anestesiados. Aquilo tudo soava tão estranho, quase surreal... Repito que o Shihan parecia mesmo um personagem de HQ ou de um daqueles filmes chineses cheios de clichês. Quer dizer que ele queria um garoto para se dedicar completamente, de corpo e alma, sete dias por semana, praticamente morar no dojô e servir de escravo, por anos? E tudo apenas com o objetivo de um dia se tornar um fera das artes marciais? Meu amigo comentou: “Que loucura! Onde ele pensa que está? No Japão feudal?” Eu concordei com a cabeça. Parecia muito sacrifício em prol de um objetivo meio incerto. Afinal, ser um professor de Karatê até parecia uma idéia interessante, e os ”mannagers” da rede Tanaka Karatê Dô não deviam ser mal remunerados; mas o fato é que o Shihan não dava nenhuma garantia. Você corria o risco de servir fielmente por meses, e, de repente, ele simplesmente chegar à conclusão de que você não era bom o bastante. Voltei para minha casa, pensei sobre aquilo por um tempo e depois esqueci.

Alguns dias depois, logo após uma das muitas discussões com a minha mãe (naquela época discutíamos muito), com a impulsividade que era minha marca registrada, voltei à relojoaria na rua Profº Capitão Pacheco Chaves. Cheguei diante da vitrine, torcendo para que o cartaz ainda estivesse lá... e estava.

Shihan Tanaka me recebeu com um sorriso disfarçado. Olhou pra mim de um jeito que me fez pensar que, de algum modo, ele já sabia que eu iria voltar. Eram dez da manhã. Ele só me deu um papel, onde escreveu, com uma letra belíssima ( Ele tinha uma caligrafia desenhada, perfeita. O Shihan é do tipo que procura a perfeição em tudo que faz – alguém aí assistiu “O Último Samurai”? – pois é, tudo a ver), um endereço no bairro do Ipiranga. Perguntou se eu conhecia o lugar, e se sabia como chegar lá. "Rua Greenfeld, 19"... Não eu não sabia. Ele me deu uma explicação rápida e pediu que eu estivesse lá, às 14 horas, vestindo agasalho esportivo.

No horário combinado, lá estava eu. O endereço em questão era um prédio de quatro andares, na esquina das ruas Greenfeld e Bom Pastor. Um edifício comercial daqueles antigos, com salões enormes e amplas janelas, já meio castigado pela ação do tempo. Uma secretária me recebeu na recepção do térreo, pedindo que subisse ao segundo andar e aguardasse. O prédio não tinha elevador. Quando cheguei ao segundo andar, fiquei impressionado com o tamanho da sala de treino. Um dojô imenso, deveria ter aproximadamente uns 20 metros de largura por uns quarenta de fundo. Logo na entrada, do lado esquerdo, um velho saco de pancada de couro. Na esquerda, dois bancos compridos para assistir às sessões de treino. E na parede oposta, alguns "makiwaras" e "punch balls". Havia também um pequeno altar xintoísta, e, ao fundo, "katanás", "bos", "bokens", bastões e lanças acomodados em cestas altas, além de outras armas brancas dispostas ao lado de uma estante de troféus. Também um grande retrato do Shihan quando jovem. Olhei e pensei que ele tinha mudado muito pouco. Uma placa pedia para tirar os sapatos antes de pisar no assoalho de madeira. Eu olhei em volta, achando tudo muito “cool”. Tirei meus sapatos, dei alguns socos tímidos no saco de pancadas. Olhei os troféus e fui até a imensa janela no fundo do salão. Dali podia ver uma boa parte da bonita paisagem do bairro do Ipiranga e Sacomã. Arredores arborizados... Não sei porque, sempre achei que esse bairro emana uma energia super positiva. Fiquei ali um tempão, na janela, admirando a paisagem. Depois voltei e sentei no banco de assistência. Havia um forte cheiro no ar, do pinho do assoalho misturado com um aroma ocre, reminiscência do suor dos milhares de atletas que por décadas a fio tinham pisado aquele lugar quase mitológico (Tanaka ministra aulas no Brasil desde 1963. Alguns dos maiores karatecas do Brasil em todos os tempos treinaram naquele lugar, eu vim a saber depois). Fiquei esperando por muito tempo, sem saber que minha paciência já estava sendo testada. O Shihan era do tipo que testa seus alunos o tempo todo, vai até o limite, até que conquistem a sua confiança. A partir do momento que ele achasse que sua fé estava justificada, seria capaz de tudo por um bom aluno. Por fim, ele apareceu, usando, como sempre, jeans e camisa xadrez. Atrás dele vinha um senpai, vestindo o “dogi” (dogui = roupa de treino, que a maioria das pessoas erradamente chama de kimono – kimono é traje de passeio no Japão. A roupa para treinar artes marciais chama-se dogui: do = caminho, no sentido de arte / gui = traje). Shihan Tanaka olhou bem para mim, muito sério. Eu disse um “oi!” meio envergonhado. Ele respondeu que eu sempre deveria me dirigir a ele como “Sensei”, e que sempre que fosse solicitado, deveria responder com um vigoroso “ossu!” (pronuncia-se "ôss!", e quer dizer algo como “sim, senhor!”). Eu disse “Ôss!” e ele me repreendeu, dizendo que o som deveria partir do esfíncter, que essa palavra deve ser dita com energia, demonstrando máxima disposição em atender a solicitação do mestre. Sentou-se no banco e deu ordem ao Senpai: “Inicie o teste!”...