26 junho 2006

A descoberta do Protestantismo

Eu lia e lia a Bíblia. A todo instante, o volume sagrado era aberto e orações eram feitas. A Bíblia foi minha primeira biografia, os Judeus meu primeiro povo e as palavras de Jesus, assim como as de Moisés e os outros profetas, eram as coisas mais importantes para mim. Eu lia muitas outras coisas também (sempre fui um leitor inveterado, da bula do remédio ao panfleto deixado na caixa de correio), mas todas as outras coisas eram apenas sonhos e pensamentos humanos, enquanto que na Bíblia estava a sagrada Verdade das verdades. Era assim que eu pensava no tempo da minha adolescência. Exatamente nessa fase da minha vida, quando concluía a leitura dos Evangelhos, com quatorze para quinze anos, eu atravessava um momento muito difícil em minha vida. Meus pais enfrentavam uma dura crise conjugal, os negócios iam mal para o meu pai , o clima estava mais do que pesado na minha casa, e os reflexos me afetavam diretamente. Minha mãe, com quem fui sempre tão ligado, por toda minha infância, de repente parecia ter se tornado minha pior inimiga. Fase adolescente, sabe como é... Você começa a achar que o mundo inteiro está contra você. O fato é que, dentro de minha casa, tudo que havia eram brigas. Meu pai começou a freqüentar bares e chegar alterado em casa, tarde da noite. Daí, mais quebra pau. Foi uma fase barra pesada, mesmo. Só estou dando estes detalhes para justificar o início desse post:

Eu (magérrimo, como era nessa época), sentado, deprimido, numa noite chuvosa de quarta feira, à porta da frente de minha casa, folheando minha pequena Bíblia, como sempre. Em meus pensamentos divagava sobre o quanto eu gostaria de encontrar minha egrégora, a minha turma, minha tribo... Quando chegaria o dia em que finalmente iria encontrar outras pessoas que pensassem como eu, interessadas nas mesmas coisas, preocupadas em encontrar Deus, antes e acima de tudo? Meus amigos da escola só estavam preocupados com futebol e namoradinhas. Eu até que tinha uma vida social interessante, para alguém que está cursando a oitava série. Era um garoto popular, gostava duma bagunça, o rei dos correios elegantes nas festinhas. Meu espírito de liderança fazia de mim “o cara” a ser seguido pela turminha da escola. Mas minha preocupação, na verdade minha obsessão, era bem outra. Ia muito além das trivialidades da vida comum. Eu nascera diferente, e não conseguia fugir disso, mesmo que às vezes tentasse. Estava dentro de mim pensar mais, muito mais do que todos à minha volta. Impossível ignorar um desejo irreprimível, uma necessidade crescente de querer ver além. Voltando das aulas, sentava em silêncio para meditar, Bíblia em meus braços, olhos fechados, tentando enxergar respostas para as perguntas que me martelavam a mente, sem piedade: “Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou?” (Um abraço, Neo_Cortex! Provavelmente teríamos feito uma boa dupla...).

Como já mencionei antes, nesta época eu freqüentava as missas de domingo, participava de alguns encontros da igreja e até freqüentava reuniões da FTP (Um dia ouvi de dentro de minha casa um coro de vozes juvenis que bradavam em tom vigoroso: “Viva Nossa Senhora!!” – saí para ver o que acontecia e me deparei com um grupo de rapazes de cabeça raspada marchando pela rua, ostentando estandartes com a cruz e diversos símbolos cristãos. Pensei logo que poderiam ser a minha galera. Saí correndo atrás dos caras e pedi informações...). Mas não me sentia completo. Minha sede por conhecimento, minha desesperadora necessidade de buscar os caminhos do espírito não estavam, de modo algum, sendo supridas completamente. Eu já estava disposto a abdicar de uma série de coisas que gostava, se fossem me impedir de avançar neste caminho. Por exemplo: Eu, que sempre fui apaixonado por Rock´n Roll, me obriguei a parar de ouvir Iron Maiden, uma das bandas prediletas, depois de entender o significado da letra de “6-6-6 The Number of The Best”. Black Sabbath também deixou de constar na minha lista de favoritas, quando soube que até o nome da banda significava “o sábado negro”, em outras palavras, a missa negra, celebrada em consagração à satã, nos rituais de magia negra da idade média. Nenhum dos meus amigos sabia destas coisas, simplesmente curtiam o som sem pensar em nada, mas eu já estudava História Antiga, apaixonadamente; com enfoque na história das religiões, claro (Será que as semelhanças são meras coincidências, Whocares??).

Bem, então era esse o panorama: Eu, muito disposto, obstinado em encontrar Deus, para encontrar a Vida e a Verdade. Possuidor de muita fé. Memória e QI (falsas modéstias à parte) privilegiados. Mas não conseguia me encontrar. Sentia-me solitário. Não podia encontrar mais ninguém que se importasse, assim como eu. As baboseiras adolescentes não me satisfaziam. Não me conformava com a alienação dominante no meu mundo. Todos os meus amigos e familiares, todas as pessoas que eu conhecia, pareciam conformadas demais com tudo que não sabiam. O que todos eles faziam me parecia muito mais um vegetar do que viver verdadeiramente. Nas palavras dos Evangelhos, Jesus parecia me desafiar: “Conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará...” – Se eu pudesse conhecer a Verdade, então seria verdadeiramente livre...

Voltando àquela noite chuvosa de quarta feira: Eu sentado à porta da minha casa, deprimido, olhando para o vazio, a rua deserta: Acho que são aproximadamente dezenove horas e trinta e tantos minutos. Dentro de mim, arde, mais intensamente que nunca, o desejo de encontrar o meu lugar, a minha família verdadeira. E simplesmente saio andando pela rua, passeando sob a fina garoa e a luz dos postes. É um caminhar meditativo, mente elevada... Desço a rua da casa onde morava, sem direção certa, simplesmente porque para lá havia caminhos que eu não conhecia, ainda. Acho que era o meu desejo inconsciente de descobrir coisas novas. Andei por cerca de pouco mais de um quilômetro, depois que saí do perímetro conhecido. Ganhei o bairro vizinho, que eu nunca antes tinha visitado. Passei por ruas novas, lugares desconhecidos, imaginando como poderia um lugar tão próximo parecer tão diferente. De repente, a chuva começou a engrossar, e eu precisei me abrigar sob uma marquise para não me encharcar. Dali iria voltar, esta caminhada meditativa já havia se prolongado o bastante, eu supunha. Como tinha andado, o tempo todo intensamente absorto em meus devaneios, ora olhando para o chão e ora para o cinza do céu carregado, só naquele momento me permiti nivelar o olhar e realmente enxergar onde estava. E poderia também dizer, porquê estava. Eu simplesmente olhei para frente, e ali estava ela! Ali, exatamente à minha frente, do outro lado da rua molhada, uma casa simples, térrea, pintada de branco, com portões e uma porta no corredor lateral abertos. Por esta última eu podia ver uma suave claridade que saía do interior, denunciando que havia atividade lá dentro. Bem acima da porta de entrada frontal, que estava fechada, palavras pintadas em arco me sorriam: IGREJA CRISTÃ EVANGÉLICA.

Um arrepio percorreu minha coluna. Eu havia saído da minha casa, caminhando sem direção, desejando mais do que tudo encontrar o meu caminho e a minha “verdadeira casa”. Simplesmente caminhei por ruas desconhecidas sem saber para onde estava indo, pensamentos materialistas ausentes. De repente, a chuva me obriga a parar, e o que vejo? Bem diante de meus olhos está um templo, do qual eu nunca ouvira falar! Atravessei a rua, passei pelo portão, ganhei o corredor e entrei pela pequena porta lateral. Algo parecido com uma igreja católica, só que menor e muito mais simples. Havia um altar, mas não haviam imagens esculpidas nem pintadas. Não haviam crucifixos. Apenas um altar, com um púlpito á frente de uma pequena assembléia. Na parede do fundo, uma pintura representando um rio ladeado de árvores e um céu muito claro, com raios de sol descendo de nuvens brancas. Arranjos de flores para enfeitar. Bancos de madeira com genuflexório, iguais aos católicos. Mas aquilo não era uma igreja católica, com certeza. No púlpito, um rapaz bem jovem comentava alguma passagem do evangelho, e cerca de oito ou nove outros jovens ouviam atentamente. Entrei um pouco tímido, um rapaz de barba e olhar bondoso me sorriu. Sentei num dos muitos bancos vazios. A palestra não demorou nem cinco minutos para terminar. Eu tinha chegado no final... Todos se levantaram, eu também. O moço de barba se aproximou e me disse: “Seja bem vindo! Você pertence à alguma congregação?” - Eu disse: “Eu sou católico...” – E ele tornou: “Seja muito bem vindo! Às quartas feiras temos esse encontro para oração e estudos bíblicos. Aos sábados e domingos temos cultos. Volte para nos visitar!” – Um outro rapaz se aproximou e também me deu as boas vindas. Por alguns minutos conversamos, os três, eu comentei que morava ali perto e da maneira incomum como chegara ali. Ficaram todos impressionados, foram extremamente simpáticos e disseram que, se eu estava procurando por Deus, aquele certamente era o meu lugar. Senti uma força muito positiva no lugar, e naqueles que me recepcionaram. Encontrei tudo que eu não tinha na igreja católica: Uma recepção calorosa, pessoas empenhadas em encontrar Deus verdadeiramente e o desejo de partilhar e ajudar outras pessoas nessa mesma busca. E o pouco que eu ouvi da palestra, foi muito bom! O preleitor era claro e objetivo, diferente dos padres lituanos que eu até então conhecia. Voltei para casa pensando que o rapaz de barba poderia muito bem interpretar João, o discípulo amado de Cristo, em qualquer filme holywoodiano. A aparência tranqüila, o olhar amoroso, o desejo transparente de ajudar o próximo. Sim, eu iria voltar.

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Nota: Há vinte e poucos anos, a cena religiosa brasileira era completamente diferente da atual. Os assim chamados “evangélicos” (na verdade, esse termo ainda nem existia), eram uma pequena minoria, perdidos em meio à massa da maioria predominantemente católica. Havia pouquíssimos templos de igrejas protestantes, e todas as menções que eu até então ouvira a respeito dessas pessoas, eram críticas, ferozes e preconceituosas. A vaga idéia que eu tinha dos assim chamados “crentes” era aquela caricatura do “bitolado”, de terninho e bíblia debaixo do braço, para o qual tudo é pecado. Daí o meu espanto ao conhecer aquelas pessoas jovens e descontraídas, todos de jeans e camiseta, praticando uma maneira, para mim, totalmente nova de buscar a Deus.