18 julho 2006

Kiai!!! - parte 2

Fui submetido a um teste que mediu minha resistência, força, elasticidade e inteligência. Passei por uma bateria de exercícios físicos que deve ter durado algo em torno de 40 minutos. Também tive que repetir partes de “coreografias” de luta, os "katas", que são a alma do karatê. Depois de tudo, fiquei aguardando de pé, no centro do dojô, por alguns minutos, enquanto o Shihan deliberava com o Senpai. Lembro-me de tê-lo ouvido comentar a respeito da facilidade que tive nas séries de alongamento e com os chutes básicos. Não demorou muito, ele se virou para mim e disse: “Você está apto. Tem certeza que é isso que você quer?” Eu já ia respondendo afirmativamente com a cabeça, mas logo me lembrei das orientações e mandei um sonoro “Ôssu!!”. Meu novo Sensei, o Shihan Tanaka, pareceu satisfeito com meu desempenho e com a rapidez com que aprendi esta pequena regra, e disse: “Amanhã, às seis e quarenta e cinco da manhã, no dojô da Vila Prudente”.
Eu teria muito pra falar dessa fase tão importante na minha vida. Obviamente não poderei contar tudo, aqui. Não há espaço para falar de dez por cento do que vivi ao lado desta interessantíssima figura, ou das tantas e tantas coisas importantes que com ele aprendi. Foi uma experiência realmente extraordinária. Eu disse no post “Uma nova descoberta”, que essa história aconteceu no momento certo em minha vida, e disse isso porque encontrei este caminho justamente na época em que andava meio perdido, num rumo que pendia para um lado perigoso. E essa experiência completamente nova acabou meio que me recolocando de volta naquele Caminho Maior, de um certo modo. Costumo dizer que não servi ao Exército, mas “servi” num autêntico dojô de karatê japonês, o que é muito melhor. Eu poderia muito bem classificar essa experiência como meu “ritual de passagem” para a idade adulta.

Minha rotina diária no dojô:
Meus dias começavam as seis da manhã, quando levantava da cama, sonolento, para um café rápido e uma caminhada de cerca de 30 minutos, da minha casa até o dojô. Chegava todos os dias pontualmente em torno de 6:45. Passava primeiro na relojoaria para cumprimentar o Shiham, que conferia o horário de minha chegada. Dali eu ia para o dojô, vestir o dogui e me preparar para o início do primeiro treino do dia, que durava uma hora e meia. As 8:30, o treino terminava, eu tirava o dogui e o dobrava à maneira ritualística, coisa que aprendi já no meu primeiro dia de Conrai. Terminado o treino, varrer o salão e uma ducha rápida. Depois, tarefas diversas. Às vezes, distribuir panfletos na esquina da Praça Padre Damião, outras vezes serviços de Office boy, como pagar contas no banco ou entregar correspondências em alguma das filiais Tanaka Karatê Dô. Depois disso, quando sobrava algum tempo antes do almoço, quase sempre era chamado para uma conversa com o Sensei Shihan Tanaka. Eram constantes aulas de Bushidô, sobre comportamento, linha de conduta, moral e ética, orientações a respeito dos treinos e pequenos “toques” sobre saúde e condicionamento físico. Depois de tudo isso, em torno de 11:30, eu era dispensado para almoçar em casa. À tarde, retornar para o treino das 14 horas, no dojô Ipiranga. Após o treino, mais tarefas (com a diferença de que o dojô Ipiranga, que era a sede administrativa, era enoooorme pra varrer...). À noite, fazia mais dois treinos: O das 18 às 19:30 e o último, puxadíssimo, das 20 às 22:00 horas (ufa!). Depois, exausto, era levado pra casa, de carona, pelo Shihan em pessoa.
Disse antes que meu Sensei parecia um personagem de histórias em quadrinhos, e o mesmo posso dizer de toda a minha vivência no dojô: seria digna de uma HQ ou um bom filme de artes marciais. Lembro-me que onde hoje é o anel viário do Sacomã, com todo aquele imenso emaranhado de viadutos, na época havia uma grande e bonita praça, com árvores e jardins floridos, com uma elevação, como uma “colina” em sua margem. Por muitas vezes, após o treino da tarde, quando saía para distribuir panfletos, após o serviço feito, me sentava no alto desta colina para meditar sobre os ensinamentos do dia. As lembranças destes finais de tarde eu guardo com grande carinho, o sol já se pondo, o corpo todo dolorido, do pesado treinamento, e eu ali, sereno, sentado, esperando chegar a hora dos treinos da noite...
Eu via meu corpo se transformar. Dia a dia, mês a mês, acontecia a metamorfose: Um rapaz alto, antes franzino, se tornava um feixe de músculos sólidos, não como um halterofilista, mas sim como um bailarino ou um atleta olímpico, de tendões alongados, cintura estreita e abdômen definido (pensar que hoje a tal “barriga tanquinho” está tão na moda...). Tomava água com limão, sem açúcar, o dia inteiro, nos intervalos entre as longas sessões de treino, que pra mim eram ainda mais puxados. O Shihan orientava a todos os Senpais: “Não dêem moleza pra ele. É um estagiário! Vai ser Senpai!” – “Peguem firme com ele!” – Eu voltava pra casa cheio de manchas roxas pelo corpo, que escondia de minha mãe. Lembro-me das vezes em que, após completar 480 exercícios abdominais de solo, via aproximar-se o Shihan, com o “shinai” (espada de bambu) na mão direita, para golpear meu abdômen... Socar o makiwara (anteparo de madeira revestida de cizal), também era exercício que devia ser feito à exaustão, e por vezes passei horas a fio, sozinho no dojô, fazendo isso. Se parava por alguns minutos, lá vinha o Shihan, surgindo atrás de mim como um fantasma, perguntar: “Por que parou? Continue! Direita, esquerda...” Eu sei que é difícil entender, mas práticas como essa literalmente “modelam o espírito”. Na verdade, estes não deixam de ser métodos extremamente eficientes para meditação zen. Socar um anteparo por longos períodos de tempo faz com que as agitações da mente se aquietem, e por fim cessem. Você se torna um “bambu oco”. Mas nessa época eu não fazia idéia do que isso significava. Enquanto o corpo progride, o condicionamento se torna perfeito, e os nós dos dedos se revestem de calos que fazem de suas mãos, armas. Armas para não serem usadas nunca. - "O espírito ou intuição é mais importante que a técnica; o espírito pressente o perigo e evita o combate" (Gishin Funakoshi). Paradoxal, sim, como a maior parte das máximas e sutras da tradição oriental. Mas nessa época eu também não fazia idéia do que isso significava.