01 agosto 2006

Fim e recomeço

Passei mais de um ano nessa vida de Conrai. Até uma ocasião em que contraí uma gripe fortíssima, daquelas que te deixam indisposto até para se mover. Mesmo assim, compareci ao dojô, fiz o treino da manhã e o da tarde, além de cumprir todas as minhas tarefas diárias. À noite, fiz mais um treino, mas já estava com febre alta e sem nenhuma condição física para participar do último, das vinte às vinte e duas horas. Pedi ao Shihan para me dispensar, por motivos óbvios. Ele me olhou bem e viu que eu estava mesmo mal. Mesmo assim, me disse que teria que participar do último treino, e que se eu me recusasse não precisaria mais retornar ao dojô. Aquilo me deixou muitíssimo irritado. Talvez isso tenha sido mais uma parte daquela história, mais um teste para saber o grau do meu comprometimento, etc, etc. Mas o fato é que, a essa altura, depois de tanto tempo servindo fielmente, sem nunca reclamar de nada, eu já estava mesmo era saturado de ser testado o tempo todo. E eu realmente não tinha condições de fazer mais um treino, extremamente rigoroso e com duas horas de duração. Tirei meu dogui, pendurei no meu armário, que deixei aberto, com a chave, e parti sem olhar para trás. E não voltei. Esse foi o fim da minha vida de Conrai. Deprimente, eu sei. Mas a essa altura eu realmente precisava de um mínimo de tempo para mim mesmo. Eu fiquei um ano sem poder namorar ou estar com meus amigos, nem curtir a vida (um garoto de dezessete anos precisa dessas coisas). Por um ano inteiro, e um pouco mais, esta foi minha rotina:

§ Trabalhar 15 horas por dia no dojô, sem receber nada além de uma pequena ajuda de custo.
§ Ter que estar disponível 7 dias por semana, 30 dias por mês.
§ Esgotamento físico em tempo integral
§ Ser testado psicologicamente todos os dias, em tempo integral.

Realmente já estava sendo demais pra minha cabeça. E assim uma linda história terminou. Claro que o Shihan, além de um mestre, era como um pai para mim, e eu senti muitíssimo tê-lo deixado assim. Mas ele era tão exageradamente duro, o tempo todo, que eu só tive coragem para voltar a procurá-lo anos depois (e foi emocionante). Ele chegou a me ligar algumas vezes, antes disso, mas um retorno meu já estava descartado àquela altura. Eu queria trabalhar, ganhar minha grana, aproveitar um pouco a vida. E assim fiz. A importância da minha vivência no karatê, como já disse, e como ficou claro, foi inestimável. Dentro do dojô eu aprendi uma outra maneira de entender a vida. Conheci o Bushido e aprendi sua importância. Entendi o valor da palavra dada, entendi o significado da palavra honra. Entendi o valor da paciência... Entendi que os limites do corpo podem ser superados, usando-se o poder da mente. As marcas e princípios do Caminho da Espada ficaram gravados de maneira indelével na minha alma e no meu ser, acho que para sempre. Isso que hoje a molecada vê em animes do tipo Dragon Ball, eu descobri, entendi e aprendi, na prática: Controlar e utilizar a energia do ki (Num momento oportuno falarei sobre o que isso, de verdade, significa). Descobri que a minha força poderia ser muito maior do que eu jamais imaginara. Agora eu podia quebrar grossas tábuas e pilhas de tijolos, que aumentavam a cada dia. Eu era veloz, resistente. Meu corpo parecia feito de pedra, minha aparência era a de um daqueles monges Shao Lin que eu via nos filmes: uma massa compacta e delgada de músculos sólidos. E eu guardaria para sempre uma certa maneira de preservar a forma física, que trago até hoje. Minha transformação foi grande e positiva, foi um estágio primordial para mim. Mas agora tinha chegado ao fim.

Recomeço
Foi um pouco antes de abandonar o treinamento no dojô que aconteceu o fato que justifica a palavra "recomeço" no título desse post. No Natal de 1983, minha mãe recebeu um cartão simples, com os seguintes dizeres, escritos à mão, no verso da figura, que representava um arranjo com pinhas e velas:

“E o que fariam vocês”, perguntou o Mestre à multidão, “se Deus lhes falasse diretamente, em pessoa, e dissesse: ‘ORDENO QUE SEJAS FELIZ NO MUNDO, ENQUANTO VIVERES’. O que fariam então?”

Aquela mensagem calou fundo em mim. Até então estava acostumado com o modelo tradicional judaico-cristão de encarar a vida espiritual: Tudo envolvia medo. “O temor ao Senhor é o princípio da sabedoria...” (Uma vez, tive a oportunidade de conversar com um monge beneditino irlandês, a respeito dessa passagem, e ele me confrontou com o original do texto bíblico, esclarecendo essa questão de uma vez para sempre. Mas isso é uma outra história...) Segundo sempre aprendera, até então, nas igrejas que conheci, a obrigação do homem para com Deus era a de servir e obedecer, com temor e total subserviência. O caminho para a salvação seria um só: “O caminho da cruz”, que significaria suportar a todas as provações desta vida com total resignação, sem direito a sequer almejar qualquer tipo de prazer ou alegria, que não fosse a de servir. Aquelas palavras, escritas com esferográfica azul, saltaram aos meus olhos, revelando um modo absolutamente novo de entender a vida espiritual. Ou ao menos levantava uma possibilidade inteiramente nova. O autor falava de algo que até então eu sequer havia considerado.
Ainda que inconscientemente, minha noção pessoal dessa relação Criador-criatura era a seguinte: O Primeiro ordena, o segundo obedece. E esse binômio, quase sempre significava, para o segundo; dor, tristeza, sofrimento, frustração... O que vem agora, leitor, eu poderia chamar, sem dúvida, de o segundo pilar, um dos que sustenta toda a base do conjunto de coisas que eu chamo os meus princípios.