14 novembro 2006

Yogananda - parte 2

O valor de “Autobiografia de um Yogue” é muito maior pelo fato de ter sido o primeiro (e por muito tempo, o único) livro escrito em idioma inglês sobre a religião, a filosofia e o modo de vida hindu, não por um jornalista ou pesquisador estrangeiro; mas por alguém da raça hindu, criado dentro da tradição, e que passou pelo verdadeiro treinamento yogue. Um livro sobre yogues, escrito por um yogue. E um yogue real, não algum destes “Swamis falsificados” que eu tenho visto por aí, nos últimos anos, cobrando altas “taxas de participação” por uma palestra “iluminada”, em algum retiro esotérico da vida...

Yogananda foi um dos maiores mestres espirituais da história moderna, e um dos principais divulgadores da doutrina yogue no Ocidente. Seu guru, Sri Yukteswar, previu, com muitos anos de antecedência (Yogananda ainda era um jovem aprendiz e nem sonhava deixar a Índia) que ele seria o principal precursor do Yoga no Ocidente, o que veio a se concretizar quando ele se mudou para os Estados Unidos e passou a viajar para diversos países, divulgando seus conhecimentos e métodos. Segundo o testemunho de diversas pessoas que conviveram com ele, inúmeros acontecimentos extraordinários permearam toda a história da sua vida, como curas de pessoas doentes que o procuravam e a demonstração de capacidades sobre-humanas. Há muito a ser dito sobre a vida e a obra deste grande yogue, o que pretendo fazer em tempo oportuno. Por hora, quero ressaltar o efeito importante que a leitura de sua autobiografia provocou em mim. Sobre o seu enfoque a respeito da disciplina do Yoga, deixo aqui um pequeno resumo:

Muitas pessoas mal informadas usam o termo Yoga apenas no sentido de ‘Hatha’. No meu caso, ao falar de Yoga, refiro-me ao sistema exposto nos Yoga Sutras (Rája Yoga de Patânjali). Este tratado abrange conceitos filosóficos de tal grandeza que inspirou comentários a alguns dos maiores pensadores da Índia(...) Como os outros sistemas filosóficos ortodoxos, baseados nos Vedas, os Yoga Sutras consideram que o poder da pureza moral (Yamas e Nyamas) é a preliminar indispensável à investigação filosófica idônea. Essa exigência pessoal, sobre a qual não se insiste no Ocidente, tem conferido duradoura validade às seis disciplinas hindus**. A ordem cósmica que sustenta o Universo não é diferente da ordem moral que governa o destino do homem. Quem não se dispõe a observar os preceitos éticos universais não está seriamente decidido a investigar a Verdade.(...) O verdadeiro conhecimento é sempre poder.”

Em outras palavras, mais importante que o treinamento das posturas ou ásanas, técnicas respiratórias ou pranayama, de alongamento, de purificação física, concentração, relaxamento, etc – é a observância do código de ética e conduta do yogue verdadeiro, os chamados “Yamas e Nyamas”. Bem, é fácil observar que, até hoje, a prática do Yoga no Ocidente continua sendo feita com ênfase apenas no lado puramente físico, em detrimento do filosófico/mental. O complexo e elaborado sistema dos antigos rishis, ao desembarcar em nosso hemisfério foi transformado em apenas mais uma modalidade de ginástica...

Yogananda faleceu em 7 de Março de 1952, e mesmo depois da sua morte, não deixou de surpreender aos devotos e também aos céticos. Transcrevo abaixo parte da carta oficial publicada pelo diretor do cemitério de Forest Lawn, em Los Angeles, Sr. Harry T. Rowe, na revista “Time” de 4 de Agosto de 1952:

A ausência de quaisquer sinais visíveis de decomposição no cadáver de Paramahansa Yogananda constitui o caso mais incomum de nossa experiência enquanto especialistas(...) Nenhuma desintegração física era visível no corpo, mesmo vinte dias após sua morte(...) Nenhum indício de bolor revelava-se em sua pele e nenhum dessecamento ocorreu nos tecidos orgânicos. Tal estado de preservação perfeita de um corpo, até onde vão nossos conhecimentos dos anais mortuários, é algo sem paralelo(...) Ao receber o corpo de Yogananda, os funcionários do cemitério esperavam observar, através da tampa de vidro co caixão, os costumeiros e progressivos sinais de decomposição física. Nossa admiração crescia à medida que os dias passavam sem trazer qualquer mudança visível no corpo em observação. O corpo de Yogananda permanecia evidentemente num estado insólito de imutabilidade. Nenhum odor de decomposição emanou de deu corpo em qualquer tempo... A aparência física de Yogananda em 27 de Março, pouco antes de colocar-se a tampa de bronze no ataúde, era a mesma de 7 de Março”.

Foi por intermédio de Yogananda que passei a realmente me interessar por Hinduísmo, que até então eu conhecia apenas superficialmente, dos livros de Osho e Krishnamurti. Mais do que uma religião apenas ritualística, trata-se de um modo de vida, uma filosofia para ser vivida, incorporada, e não apenas “observada”. O que, aliás, era exatamente o que Jesus queria, e ensinava como sendo a via perfeita para o “Reino” do Pai Celestial. Afinal, sem nenhuma dúvida o cerne da mensagem de Cristo é a conscientização de que mais importante que a observação dos rituais externos, importa ao homem “gravar a Lei” de Deus em seu coração, no mais íntimo do seu ser. Por isso ele diz, por exemplo, que não basta não adulterar - "Quem cobiça a mulher do próximo já adultera com ela no seu coração"(Matheus - 5:28). Jesus é claro, não basta “aparentar” virtudes, é preciso “ser”; de verdade. Seja gelado ou quente. Se for morno, será vomitado – "Porquanto és morno, te vomitarei de minha boca"(Apocalipse 3:15-17). A proposta é a mudança interior real, plena, integral. Ou então, melhor nem tentar.

Por isso mesmo, eu, que até então me considerava ainda um “cristão”, ainda que nada ortodoxo, não via incompatibilidades entre Hinduísmo e o que eu gostava no Cristianismo. Apesar de reverenciar a um imenso panteão de muitíssimos deuses e deusas, o hindu esclarecido mantêm-se plenamente consciente de que estas “divindades” todas são apenas aspectos do Deus maior, representações do Supremo Infinito, o qual é inefável, indescritível. Conta uma antiga lenda tradicional hindu que:

Os grandes deuses estavam reunidos em assembléia, discutindo qual deles seria o maior: Brahma, o criador, Vishnu, o conservador/mantenedor, e Shiva, o destruidor. Brahma, querendo demonstrar a sua capacidade e se auto-afirmar como o mais poderoso e importante dos deuses, criou do nada um lindo pássaro de penas multicoloridas, que emanava luz e exalava delicioso perfume, conforme batia suas grandes asas. Mas Visnhu rapidamente observou que se não fosse pelo seu poder de conservar a vida, a beleza do pássaro maravilhoso não duraria mais que um breve instante. Shiva riu da conversa dos dois, e num instante mandou uma nuvem negra pra cima do pobre animal, que morreu no mesmo instante. Então falou: "Eu sou o mais poderoso!" – Brahma retrucou, dizendo que poderia criar milhões de outros pássaros iguais. Vishnu gritava que Shiva o havia pego de surpresa, senão teria sido capaz de manter o pássaro vivo. Brahma respondeu: "Mas você só pode conservar o que eu crio. Então eu sou maior!" – "E eu sou capaz de destruir o que você cria! Sou o maior de todos!" – Tornava Shiva. Visnhu não se conformava: "Eu sou capaz de deter a morte e a destruição, conservando e mantendo todas as coisas, enquanto eu quiser! O mundo dos mortais subsiste por minha vontade!"... A discussão parecia que nunca teria fim. De repente surge, do nada, um menino no meio deles. Um menino muito tranqüilo, de olhos suaves. Um menino que Brahma não havia criado, e cuja vida não era mantida por Vishnu. Na verdade nenhum deles nunca tinha visto antes aquela criança. E o que estaria ela fazendo ali, passeando livre, no lugar sagrado dos maiores deuses!? Shiva, então, disse: "Agora vou provar que eu sou o maior de todos os deuses: Este menino, que não foi criado por Brahma, e nem tem a sua vida mantida por Visnhu, será destruído por mim! Assim ficará claro que o meu poder vai além do de vocês!" – Dizendo isto, Shiva voltou suas temíveis mãos para o garoto, e delas emanaram descargas de força destruidora. Nuvens negras envolveram o menino, enquanto Shiva ria. Mas, quando as nuvens se dissiparam, o menino continuava no mesmo lugar de antes, vivo e tranqüilo. Shiva tentou de novo e de novo. Usou todo o poder que tinha, e nada. Então o menino se retirou, do mesmo modo que surgira, sem dizer nem uma palavra.

Esta lenda ancestral alude justamente à crença num Deus Maior, único, detentor de todo o poder, do qual as imagens das divindades, nos templos, apenas representam, grosseiramente, os seus diversos aspectos.

Na época da minha leitura do livro "Autobiografia...", em princípios da década de 90, ainda não havia acesso popular à internet. O conceito de computadores domésticos estava apenas começando a se desenvolver. Por isso eu ainda não tinha como saber que havia um centro de estudos da Self Realization Fellowship aqui mesmo, em São Paulo, no Bairro do Itaim, onde estudantes recebiam ( e recebem) a iniciação em Kriya Yoga diretamente de monges da ordem dos Swamis. Só muito depois eu vim a descobrir isso, e o que aconteceu então, eu reservo para os próximos posts.

** Os seis sistemas ortodoxos (com base nos Vedas), são: Shânkiam, Yoga, Vedanta, Mimânsa, Nyaya e Vaisesíka. Não confundir com o “Nobre Caminho Óctuplo” do Budismo, uma guia para a conduta do homem e que abrange: 1- ideais corretos; 2 – motivo correto; 3 – linguagem correta; 4 – ação correta; 5 – meios de vida corretos; 6 – esforço correto; 7 – recordação correta do ser; e 8 – realização correta (Samadhi).