22 setembro 2006

Eu, budista


Eu levava a Busca REALMENTE muito a sério. De verdade. Por isso para mim não bastava apenas estudar, ler livros, participar de cursos e seminários, apreciar as religiões e filosofias como quem olha peixinhos num aquário. Eu queria encontrar a Verdade, eu queria vivê-la, experimentá-la, “me tornar um” com ela. Eu não estava disposto a escolher uma ideologia como quem escolhe a cor da roupa que vai vestir. Eu não queria “brincar” de ser budista; se eu viesse a entender que o Caminho era este, então me tornaria um monge. Pode parecer estranho, e sei que hoje meu comportamento seria diferente, mas este era o meu modo natural de ser. E lá fui eu, estudar o budismo. Mais uma vez, “enfiei a cara” nos livros sobre o assunto, para ao menos tentar entender as bases, os princípios por trás daquele modo de vida que me parecia tão atrativo. Comecei do começo, como é do meu costume. Sakiamuni. Sidarta Gautama. O Iluminado. Buda. Não vou contar aqui a história, ao menos por hora, mas ela já foi exaustivamente contada e resumida em outros lugares. Na verdade, muito pouco se sabe a respeito desse controvertido personagem, sobre o que é histórico e o que é pura lenda. Mas me chamou muito a atenção o fato de os budistas simplesmente não se importarem com isso. Lhes basta seguir “O Caminho do Despertar”.

Depois de estudar e me encantar com a saga do Buda histórico, procurei os grandes templos, para conhecer de perto a realidade do universo budista. Conheci monges, abades e reverendos de diversas linhas: Theravada (do páli = Ensinamentos dos Antigos; escola do grupo Sthaviravada, fundada pelo monge Moggaliputta Tissa), Mahayana (do sânscrito = Grande Veículo; movimento surgido por volta dos séculos I-II que procura valorizar a libertação de todos os seres através da compaixão dos Bodhisattvas), Vajrayana ( do sânscrito = Veículo de Diamante; forma esotérica do buddhismo Mahayana, baseada nos ensinamentos dos Tantras)... Fiz especiais amizades na Comunidade Budista Soto Zenshu - Templo Busshinji, no bairro da Liberdade, em São Paulo, na Associação Religiosa Nambei Honganji e no Centro de Dharma da Paz Shi De Choe Tsog – Budismo Tibetano. Mas foi no Templo Higashi Honganji, no Bairro da Saúde, em São Paulo, que me matriculei no curso de formação em budismo. E foi nesse mesmo templo que eu conheci o homem que se tornaria para mim um verdadeiro guru, e me ensinaria, da maneira mais profunda e verdadeira possível, o que significa ser budista, na prática.

Nesse estágio, eu meditava na escola Soto Zenshu, e estudava no Higashi Honganji, com os Reverendos Neves e Imai. O ambiente dos templos era para mim simplesmente arrebatador, em termos de paz e serenidade; era simplesmente impossível permanecer nestes lugares sem me sentir invadido por uma sensação de intensa tranqüilidade e quietude. Quanto mais estudava, eu entendia que o Budismo, de um certo modo, provavelmente é o mais próximo possível da Verdade que os esforços humanos podem chegar.

Mas eu tinha problemas com a questão ritualística. Se o budismo se pretende uma “ciência” da alma, então porque tantas formas e alegorias? Isso me incomodava. Toda aquela infinidade de Budas e Bodhisattvas, todo o folclore... Havia a questão da devoção ao Buda Amida (a divindade japónesa que governa a região da felicidade, o céu. É um dos cinco Niorais ou Budas da meditação; personifica a inteligência da prédica, e a caridade no amor). A única tradição que não possui este conceito é a Theravada. Sobre esse ser mítico não há muito consenso entre as linhas budistas, mas, num certo sentido, é ensinado que dependemos dele para nos iluminarmos. Os que já me conhecem podem imaginar que eu não me sentia nem um pouco a vontade com idéias como essa. E havia ainda a questão da reencarnação**. Como e porque crer e ter como verdade indiscutível algo que não podemos saber, realmente (pelo simples fato de que nunca experimentamos)? Afinal, ciência é isto, aceitar apenas o que se pode provar. Se fosse para aceitar preceitos tradicionais puramente pela fé, eu nunca teria deixado o Catolicismo, que era a religião dos meus pais. Minha
idéia de ser padre não vingou por causa desse tipo de coisa, lembram-se? Até que ponto eu era capaz de engolir alguma coisa que já chegava pronta e mastigada, como verdade absoluta? - “Não acrediteis em coisa alguma apenas por ouvir dizer. Não acrediteis na fé das tradições só porque foram transmitidas por longas gerações. Não acrediteis em coisa alguma só porque é dita e repetida por muitos. Não acrediteis em coisa alguma pelo fato de vos mostrarem o testemunho escrito de algum sábio antigo. Não acrediteis em coisa alguma só porque as probabilidades a favorecem ou porque um longo hábito vos leva a tê-la como verdadeira. Não acrediteis no que imaginastes, pensando que um ser superior a revelou. Não acrediteis em coisa alguma com base na autoridade de mestres e sacerdotes. Aquilo, porém que se enquadrar na vossa razão, e depois de minucioso estudo for confirmado pela vossa própria experiência, conduzindo ao vosso próprio bem e ao de todas as outras coisas vivas, a isso aceitai como Verdade. E daí pautai a vossa conduta!" (Kalama Sutra, 17:49) - Apesar dessa famosa frase do próprio Buda, na prática não era isso o que acontecia na maioria das ordens budistas que eu conheci. Nunca foi da minha natureza seguir rituais às cegas, sem saber exatamente o que estava fazendo e porquê.

Eu havia manifestado, claro, meu interesse em me tornar monge a este admirável homem que mencionei, o reverendo Neves. Num belo dia ele me olhou bem nos olhos e me disse: “Gafanhoto (brincadeira, ele falou meu nome real, que é segredo ;-)), há uma coisa importante que você precisa saber: Mesmo que você venha a se tornar um monge, lembre-se que nada em sua vida vai mudar tanto, isto é, nada ‘especial’ vai acontecer simplesmente por você fazer votos e raspar a cabeça. Nossas vidas como monges não são tão diferentes da sua como cidadão comum. Eu, por exemplo; minha rotina é cuidar da horta, ir ao banco pagar as contas do templo, cuidar de diversas questões administrativas, ministrar aulas aos novatos e leigos... Nada muito diferente da sua vida. Ando ocupado o dia inteiro com a minha rotina. Se o seu objetivo é realmente encontrar a Verdade, saiba que não chegará mais perto dela entrando para o Templo. Nem deixando de entrar. A Busca pela Verdade é algo pessoal. Posso lhe assegurar que há monges que não tem a menor idéia do que seja essa Verdade que você procura, apenas estão no serviço religioso por comodidade, ou por amor as tradições. Então, lembre-se: Se você quiser se juntar a nós, no serviço, será muito bem vindo. Você é um garoto especial (desculpem a falta de modéstia, mas eu não achei que deveria suprimir um elogio sincero, que ganhei de um homem sincero). Mas lembre-se que encontrar a Verdade não está, necessariamente, relacionado à vida monástica”.

Não preciso dizer que minhas esperanças se desvaneciam novamente. Eu não estava interessado em ser monge para dar continuidade a uma tradição, por mais bela que fosse. Eu queria... Bem, vocês já sabem o que eu queria.

E assim terminou a minha fase budista. Mas não a minha amizade com os reverendos, que continua até hoje.

"Por mais que um grande fogo incendeie o universo de bilhões de mundos, devemos atravessá-lo para procurar ouvir o ensinamento, alegrando-nos na Mente Confiante, mantendo-a e praticando-a. Isto porque, mesmo que muitos bodhisattvas desejem ouvir este ensinamento, ainda assim é muito raro conseguí-lo. Caso alguém venha a ouvi-lo e seguí-lo, jamais retornará até atingir o Estado da Iluminação Suprema".
(Sutra Maior de Amida)

** A palavra reencarnação é usada com frequência para se referir aos renascimentos. No entanto é geralmente aceito pelos instrutores budistas atuais que, em vista das doutrinas budistas de Anatta (não-eu) e Anicca (impermanência) que reencarnação é um conceito considerado por muitos como incompatível com o ensinamento budista. O renascimento (ou emanação) descrito pelo budismo é em vez disso uma herança de agregados impermanentes, não de uma verdadeira identidade permanente.